Somos uma espécie híbrida
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Volume 22 - Novembro de 2017 |
UFRJ
Na bíblia, o Gênesis
nos diz que Adão foi o ancestral comum de toda humanidade. Mais adiante, no
capítulo 6, fala-se que existiam “gigantes” sobre a terra, um povo dominante perito
nas artes e ciências da época, descendentes de anjos machos com filhas de
homens. Eles existiram na época anterior a um tremendo cataclismo que mudou
toda a terra e seus habitantes: o “dilúvio universal”, citado em todos os mitos
de fundação de todos os povos antigos. O povo de gigantes desapareceu nessa
hecatombe, e a humanidade adâmica teve um novo começo.
O relato sugere que uma espécie hominídea juntou-se à humana e produziu uma
espécie híbrida fértil, que conviveu com os humanos. Adão não estava sozinho no
Paraíso. Sabemos hoje que nossa espécie
foi a única que sobreviveu dentre várias similares, e
que nossos ancestrais trocaram genes com elas que, alias, tinham genomas quase
idênticos. O sequenciamento do genoma humano atual e de genomas de hominíneos extintos (Neandertal, Denisovan,
e outros) provou de forma irrefutável que não somos uma “espécie pura”. Pelo
menos 20% do nosso DNA é híbrido, proveniente de outra
espécies hominíneas hoje desaparecidas. Temos em
nosso DNA a contribuição dos genes de Neandertais, Denisovans, Africanos arcaico, Homo erectus, e possivelmente Homo
floresiensis (que ficou conhecido como o “Hobbit”). Isso não é incomum,
pois, de fato, são numerosos os exemplos de espécies separadas - inclusive com
número de cromossomas diferentes -, que se cruzam e geram descendência híbrida
e fértil. Nós
somos uma espécie híbrida, e o nosso DNA não mente. Em outras palavras, houve uma
época em que nosso ancestral Cro-Magnon e outras espécies hominineas conviveram.
Não estávamos sozinhos no paraíso da pré-história. O sequenciamento do DNA
de um Cro-Magnon de 28 mil anos atrás mostrou que ele não difere do DNA de um
europeu atual, isto é, a sequência permaneceu estável pelo menos por todo esse
tempo (Caramelli et al.,
2008). Da mesma forma, ficou recentemente provado que o DNA de um Neandertal
que viveu há 38 mil anos iguala-se a 99,99% do DNA de uma pessoa de hoje, ou
seja, tanto quanto diferem os DNAs de dois seres
humanos (esses achados jogaram por terra muitos mitos sobre os Neandertais - que
não tinham linguagem, eram obtuso, brutos). O
Cro-Magnon e o Neandertal tinham grandes cérebros e eram
tão modernos quanto nós, e a genômica mostra que efetivamente houve cruzamento
entre ambos, de fato, todo caucasiano europeu e asiático modernos tem DNA Neander em seus genomas (em média 2%), exceto os africanos
(o Neandertal não existia na África). A arqueoantropologia
sugere que esses hominíneos e outros existiam há pelo
menos 30 mil anos, portanto “antediluvianos”, mas não é impossível que isto tenha
acontecido em um tempo menos recuado, como acreditam alguns pesquisadores. Retornemos á história
do Gênesis. Depois que o dilúvio exterminou a raça de gigantes, o mito nos diz
que a semente humana foi preservada em três povos distintos ou “raças”: Cuxe, Sem e Jafé. Essas
populações conviviam em uma estreita faixa de terra num planeta inundado, uma
espécie de arca natural, e depois que as Águas baixaram eles se espalharam para
o sul (Africa), leste (Europa) e norte (Ásia). Essas narrativas
se repetem insistentemente nos textos sagrados antigos que tratam da gênese
humana, mas como são mitos elas não nos oferecem evidências, não havia ainda a
narrativa histórica. A genética humana e a
antropologia recolocaram com base em algumas evidências a origem do homem na
África, que passou a ser a “arca de Noé” científica. Essa teoria, conhecida
como “Out of Africa”,
considera que os ancestrais dos povos caucasianos e asiáticos (ou seja, os
bíblicos Sem e Jafé) saíram da África há cerca de 60
mil anos (o Neandertal já estava na Europa há pelo menos 300 mil anos). Note que
a teoria do “Out of Africa”
segue o mesmo roteiro do Gênesis bíblico com uma diferença: no Genesis, as
origens europeia, africana e oriental foram raciais, enquanto na teoria Out of Africa a origem foi uma só,
não havia raças. A teoria Out of Africa fundamentou a campanha
acadêmica para eliminar o conceito de raça na década de 1990. O marco desse
movimento foi o trabalho de Alan Wilson e Rebecca Cann
que defenderam a teoria da “Eva africana”, a mãe ancestral comum de todos os
humanos com base na sequência do nosso DNA mitocondrial (que herdamos de nossas
mães). Justiça seja feita, eles colocaram Eva na África, mas disseram estar
plenamente consciente que “genealogia não é geografia”, e que sua alocação de
Eva na África era “uma suposição e não uma afirmação”. Mas como ninguém estava
preocupado com isso a teoria da mãe africana ancestral ganhou força, especialmente
através da imprensa, embora houvesse inconsistência nos dados e nenhuma análise
do cromossoma Y. Em 2012 dois geneticistas
russos apresentaram evidências consistentes que negavam que os povos de origem
europeia e asiática saíram da África. Eles se basearam na análise de haplogrupos do cromossoma Y e concluíram que nosso
ancestral comum não necessariamente é africano, e que, de fato, “nunca foi
provado que ele viveu na África” (Klyosov e Rozhanski, 2012). Os autores examinaram a teoria da origem
“Out of Africa” dos
europeus caucasianos analisando 7.556 haplogrupos e
não encontraram nenhum deles entre os haplogrupos
africanos A e B, e, inversamente, não encontraram nenhum haplogrupo
europeoide entre os africanos. Diante deste fato, em
que dúzias de marcadores genéticos não encontram correspondência entre um e
outro grupo, fica difícil, senão impossível admitir qualquer ligação entre a
origem dos europeus e a teoria Out of Africa. Os resultados apresentados nesse trabalho forçam a
conclusão que africanos e caucasianos descenderiam separadamente de um
ancestral comum bem mais antigo. Essa conclusão pode ser chocante
para alguns, mas não acho que isso deva alimentar acusações infundadas de
racismo dos autores, pois não se trata aqui de ideologia, mas de evidências que
aguarda um ampla discussão na academia. O trabalho
deixou causou mal estar no ar ao inviabilizar a tese da gênese africocêntrica e da “Eva africana” dos defensores do Out of Africa, e a imprensa e o meio
acadêmico continuam ignorando o trabalho de Klyosov e
Rozhanski. Com isso, ficamos sem o debate público que
certamente traria importantes contribuições e críticas. O quebra-cabeça de nossa origem
começa a formar seu primeiro esboço. Não há mais dúvidas de que a humanidade, geneticamente falando, é uma espécie
híbrida, e a teoria afrocêntrica de nossa origem não é mais
um consenso. Ao que parece, um
ancestral mais comum antigo do que até então se acreditava teria originado dois
grandes grupos geográficos humanos, e isto de modo algum significa, no meu
entender, duas raças. O que parece ser certo é que não estávamos sozinhos no
Paraíso. Referências: Klyosov AA, Rozhanski IL. Re-examing the “Out of Africa” theory and the origin of Europeiods (Caucasians) in the light of DNA genealogy,
Advances in Anthropology 2012; 2: 80-6. Caramelli
D, Milani L, Vai S, Modi A, Pecchioli
E, et al. A 28,000 years old Cro-Magnon mtDNA sequence
differs from all potentially contaminating modern sequences, PloS ONE 2008 (Published On-line July 16, 2008). |
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